7 de outubro de 2013

OS GORILAS, O POVO E A REFORMA AGRÁRIA, Gondin da Fonseca. São Paulo: Editora Fulgor. 1963

Manifesto dos bispos do Brasil

Escrito em 1963, quando a sociedade brasileira discutia as ‘Reformas de Base’ propostas pelo presidente João Melchior Marques Goulart[i]. Dentre elas a reforma agrária. O cenário foi a inauguração da XXIX Exposição e Feira Agropecuária e a V Exposição Nacional de gado Zebu, em três de maio daquele ano, na cidade mineira de Uberaba, promovidas pela Sociedade Rural do Triângulo Mineiro, posteriormente, Associação Brasileira dos Criadores de Zebu, mais conhecida como ABCZ, à época, presidida por Antônio José Loureiro Borges.

O autor dá ênfase na capa do livro ao Manifesto dos Bispos do Brasil, publicado em primeiro de maio daquele ano, sob o guarda-chuva da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil. Todavia, o discurso do presidente Antônio José Loureiro Borges expressando o pensamento dos produtores rurais exigiu de Jango um pronunciamento. Uma posição pública sobre a proposta de reforma agrária levada a efeito pelo seu governo. E o presidente a deu. E de improviso. O presidente não levava discurso preparado. Ali, estava a expressão dos proprietários fazendeiros de um lado, e a do presidente reformista de outro. São duas falas de importância histórica para o entendimento do pensamento sobre a reforma agrária ao longo da história contemporânea brasileira, daí, a proposição de transcrevê-las.

Outros documentos como o Manifesto dos Bispos do Brasil, a mensagem do presidente da república enviando à Câmara dos Deputados o Anteprojeto de reforma agrária e o Anteprojeto em si, também foram adensados pelo autor, e que, dado suas importâncias históricas, estaremos publicando-os oportunamente.

Alguns recortes sobre a questão agrária publicados no Jornal do Brasil naquele ano:

12 de maio de 1963 – Em Minas não se sente a pressão dos campos em favor da reforma agrária, porque o problema atingiu, lá, proporções mais graves que em outros Estados: de 5 em 5 anos 1.200.000 cidadãos mineiros emigram para outras regiões, pela impossibilidade de penetrar, viver e trabalhar na estrutura agrária de sua terra, e mais fechada e desumana do país.

19 de maio de 1963 – Ao longo das três rodovias que construí no meu governo, criarei cidades que serão núcleos agrícolas. Na Brasília – Acre, em cada 80 quilômetros nascerá uma cidade, um núcleo ocupado por cerca de 16 mil habitantes. Na Brasília – Fortaleza e na Brasília-Belém, em cada quarenta quilômetros se fará a mesma coisa. Assim, como em círculos concêntricos, povoaremos o Brasil, fazendo as suas terras inexploradas produzirem. Ao mesmo tempo daremos assistência a lavradores, aumentando a rede de silos e armazéns e fornecendo transportes e adubos a preços acessíveis. Construirei, assim, em dois anos, 160 cidades, ao longo daquelas rodovias[ii].



[i] Conhecido como Jango.
[ii] Juscelino Kubitschek de Oliveira em campanha presidencial às eleições de 1965. Duas observações: a primeira de que o ex-presidente era dado como favorito nessas eleições, e, segundo, se no seu primeiro mandato privilegiou a industrialização urbana, neste segundo, o foco de seu projeto de governo era campo.

Trecho do discurso do presidente da Sociedade Rural do Triangulo Mineiro, Antonio José Loureiro Borges na inauguração da XXIX Exposição e Freira Agropecuária e a V Exposição Nacional de Gado Zebu, na cidade de Uberaba, em 1963.

Esta preocupação e esta intranquilidade se devem ao projeto de reforma agrária, ora em discussão no Poder Legislativo da República.

Esperamos confiantes e certos, hoje, em Uberaba, um pronunciamento de V. Excia., senhor Presidente, que também é homem do campo, um pronunciamento de conforto e apoio para a solução do atual problema.

Afirmamos a V. Excia. Que, se este problema aflitivo e angustiante para a classe rural for equacionado de forma satisfatória, mercê de Deus, caminhemos livres, propiciando à Nação uma ajuda eficaz e positiva.

No momento em que os espíritos mais exacerbados procuram destruir nossa tradição democrática, há necessidade de que os dirigentes responsáveis pelos destinos do Brasil fortaleçam nossas convicções no regime, que representa a única forma de vida livre.

É para nós, imperativo de consciência, a defesa das legítimas e justas reivindicações do povo e das classes que o compõem, desde que seja resguardada a liberdade, que é indispensável para a sobrevivência do regime democrático.

A discutida reforma agrária, através da reforma Constitucional, com relação aos artigos 141, parágrafo 16, e artigo 147[1], dizendo indispensável sua alteração para a aplicação de uma reforma agrária cujo conteúdo não está ao alcance da maioria, que não a entende, e nem sabe fazê-la aspiração autêntica, é matéria perigosa e arma de natureza eminentemente política.




[1] Os artigos 141, § 16 e 147 garantiam o direito à propriedade, e, em caso de desapropriação por interesse social, como a reforma agrária, o pagamento previamente depositado em dinheiro. A proposta de Jango era de que esse pagamento fosse feito em longo prazo e através de Títulos Especiais da Dívida Pública, pago pelo valor nominal declarado pelo proprietário ao imposto de renda; ou, o utilizado para recolhimento de impostos, e, finalmente, o estabelecido em avaliação judicial. 

Discurso do presidente João Melchior Marques Goulart na inauguração da XXIX Exposição e Feira Agropecuária e a V Exposição Nacional de Gado Zebuíno, na cidade de Uberaba – MG, no dia três de maio de 1963, às 10 horas.

Realmente, Uberaba pode considerar-se a legítima capital do Zebu de nosso País. Este município tem demonstrado o quanto deve o Brasil ao espírito abnegado do estado de Minas Gerais, Estado de tradições épicas desde os tempos do ouro e das bandeiras.

Permitam-me que evoque neste momento a figura de um grande brasileiro que tanto prestigiou outrora esta exposição e que foi um dos que mais lutaram, em nosso País, pelo desenvolvimento da pecuária, especialmente da pecuária de Minas, orgulho de nossa Pátria. Permitam-me os uberabenses que, nesta oportunidade, recorde o grande presidente Getúlio Vargas, estadista singular que nunca vos faltou com o seu apoio, com o seu estímulo – e que jamais deixou de amparar os pecuaristas de Minas, especialmente no que concerne à criação do Zebu, e isso numa hora em que poucos acreditavam no seu êxito.

Ouvi, com o maior respeito, as palavras do presidente da Associação dos Criadores deste município e do Triangulo Mineiro. Acreditai pecuaristas de Minas Gerais, que o governo federal, interessando-se, como agora o faz, por esta exposição, outro intento não tem senão o de prestigiar a classe rural, um dos fundamentos da economia de nossa Pátria. Anima-o tão somente o propósito de voz trazer uma palavra de estímulo, de fé e de confiança, homenagear aqueles que se dedicam à pecuária, atividade rural das mais antigas, das mais úteis e das mais patrióticas do Brasil.

Eu faltaria a um dever de lealdade a Minas – a Minas e a este País – se aqui respeitosamente, mas com franqueza não manifestasse minha discordância, neste instante, dos conceitos emitidos pelo jovem e digno presidente desta associação, quanto ao problema da reforma agrária. Deixarei bem claro o pensamento do governo federal sobre tema tão discutido. Não desejamos expropriar terras arbitrariamente, de uns, para entregá-las a outros; não queremos transportar para um plano de riquezas uma classe, esmagando outra que, com trabalho e sacrifício, construiu suado patrimônio. O que desejemos é, exatamente, fortalecer o regime democrático em que vivemos e que havemos de defender e preservar.

Um regime democrático, porém, não se fortalece com palavras e discursos. Fortalece-se transformando o estado num instrumento de defesa do povo, de defesa de suas justas reivindicações. Não é sistema estático, mas dinâmico. Há de marchar ao encontro dos anseios populares, atendendo às suas legítimas aspirações e constituindo, então, através desse dinamismo, a verdadeira paz, conseqüente da justiça social – justiça que todos desejamos e que nos empenhamos em conquistar, mas que jamais obteremos eternizando o privilégio de uns poucos à custa da miséria e das dificuldades da maioria.

Sinto-me perfeitamente à vontade para falar deste problema porque nasci camponês, sou homem identificado com a terra. Identificado de fato e não através de negócios realizados longe dela. Aos 15 anos já labutava lado a lado dos trabalhadores rurais e de meu pai, em todos os serviços próprios de uma fazenda. Sinto-me à vontade para dizer que a reforma agrária se há de processar em bases humanas e cristãs – mas se há de processar realmente para tranqüilidade da família brasileira, para que os trabalhadores rurais possam participar das riquezas da sua Pátria; para que os pobres tenham oportunidade de sair da pobreza; para que os servos da terra consigam um dia, afinal, ser donos dela. Hão de comprá-la, de pagá-la com o seu esforço. Ninguém pode negar ao trabalhador rural esse direito elementar de ter também o seu palmo de chão para produzir. Não se compreende que, num País da vastidão continental do Brasil, um pobre que se cansa dia após dia vergado sobre a terra não tenha, jamais, o direito de lhe chamar sua.

Eis a tese que defendo. Reafirmo que de nada adianta pretender uma reforma agrária sem modificar o texto constitucional. Iludiríamos o povo se lhe acenássemos com a possibilidade de fazê-la sem alterar a Constituição. Citarei apenas uma cifra e gravem-na bem no espírito os homens do interior. Cifra bem significativa: para expropriar apenas 10% das terras agricultáveis da nossa Pátria, precisaríamos de mais de dois trilhões de cruzeiros, importância que o governo, indiscutivelmente, não poderia pagar. Se o tentasse fazer seria à custa de uma inflação aterradora, a cujo impacto não resistiria nem mesmo as instituições democrática que defendemos.

Sabem os pecuaristas de Minas Gerais que qualquer reforma agrária obedecerá a um critério prioritário quanto às desapropriações. Nenhuma lei pode pretender desapropriar terras que estejam produzindo em termos econômicos, que estejam prestando benefício ao País. Neste caso, a propriedade deve ser preservada, os direitos de senhorio resguardados. Mas a terra há de ter, precipuamente, uma finalidade social. Não pode favorecer, somente, os que a possuem. Comporta, intrinsecamente, um sentido social, pois dela depende o bem estar da coletividade. Não há de beneficiar apenas os que por trabalho, por herança, por sorte ou por privilégio a possuem.

Ficai tranquilos  jamais concordaríamos com a expropriação pura e simples de terras. Jamais concordaríamos com o critério arbitrário de tomar a terra de quem a trabalhou para, simplesmente, a entregar a quem deseje trabalhá-la. O que pretendemos é que as terras improdutivas se integrem numa finalidade social. As grandes áreas localizadas junto aos centros de consumo precisam estar a serviço da coletividade e não, apenas, a serviço individual.

A reforma a que visamos, a reforma por que há tantos anos batemos, há de contribuir para que todo o povo brasileiro participe da riqueza nacional. Se assim não for, de que nos adiantará viver neste vasto território, território imenso, com áreas das mais férteis do mundo? De nada, meus patrícios, desde que o povo as não usufrua, desde que o povo delas se veja excluído, sentindo-se no meio em que trabalha um pária, um marginalizado. Respeitemos o direito do proprietário, mas que a propriedade adquira um alto sentido social, isto é, que preste serviço ao País, como instrumento atuante e democrático.

Falamos em pagamento em longo prazo porque o Brasil não teria condições de comprar terras pelo seu preço atual, liquidando os débitos à vista e depositando, previamente, as importâncias respectivas.

Ninguém deseja toma chão cultivado pelos seus donos. Esse será respeitado. O que não se pode respeitar é o latifúndio improdutivo, as verdadeiras sesmarias dos que vivem pensando em valorizações sem meditar que toda valorização, efetivamente, decorre de um processo social de que os camponeses participam. Que os ricos cedam, a tais valores humildes e anônimos, um pouco do que na verdade lhes cabe. Não cedam a partidos políticos, não cedam ao presidente João Goulart. Cedam ao povo brasileiro, à própria Pátria, para que a aristocracia agrícola se transforme, pacificamente, em democracia do campo.

Esse é o nosso pensamento. Nosso e não de partidos extremistas, estranhos à concepção cristã do povo brasileiro. Não defendemos ideologias contrárias ao sentimento cristão do nosso povo – sentimento que é nosso, que é vosso, terra sagrada de Tiradentes, que é o de todo o Brasil.

Quem hoje deseja a reforma agrária não são os partidos de esquerda, somente: é a própria Igreja Católica, através da voz mais autorizada do mundo – que é o chefe espiritual de todos nós, a voz do santo Padre, o Papa João XXIII.

Que o seu apelo foi ouvido, foi sentido aqui no Brasil, testemunharam-no ainda ontem os bispos brasileiros em manifesto à Pátria, pedindo, também, a reforma agrária que há tanto tempo vimos reivindicando.

Não são, portanto, os partidos políticos apenas: são os bispos brasileiros; são os homens que chefiam espiritualmente o nosso povo; são as massas brasileiras que acreditam na sua Igreja. São altos dignitários que, com responsabilidade, vêm dizer publicamente que a reforma agrária é indispensável à paz e à justiça social.

(palmas prolongadas)

Obrigado! Obrigado! Agradeço profundamente a manifestação de apreço que generosamente me dais e que sempre recebi deste bravo povo montanhês – povo que soube sela com sangue a independência do Brasil. Que o presidente da Associação Rural desta cidade e do Triângulo, e todos os ruralistas mineiros, recebam as minhas palavras como tributo e homenagem.

Eu não poderia vir aqui, Minas Gerais, sem traduzir outro pensamento que não fosse o do governo, expresso na mensagem que já tive a honra de enviar ao Congresso Nacional.

A reforma agrária já está encaminhada. O projeto que tínhamos o dever de enviar já se encontra no Congresso para que ele, na sua alta soberania, e com a sua independência, o examine à luz da realidade brasileira.  Para que o examine e, sensível como é as reivindicações das classes populares, decida depois, conscientemente, com a responsabilidade de quem está resolvendo um dos problemas mais graves do Brasil atual.

Agradeço mais uma vez às Associações Rurais de Minas. Inaugurando esta Exposição, verifico, de visu, a pujança extraordinária da pecuária mineira, que o governo deseja preservar e desenvolver.

Ainda há poucos dias, há três dias, determinei à Carteira Agrícola do Banco do Brasil que elevasse até 42 milhões de cruzeiros o teto para financiamento à pecuária e à agricultura. Cumpre-nos auxiliar os homens que vivem da terra, que a lavram, as semeiam e a fazem produzir.

Estes lavradores, grande ou pequenos fazendeiros, são em geral homens sensíveis às necessidades dos que com eles colaboram de sol a sol, ajudando-os a construir a grandeza de suas propriedades. Poderão estar tranquilos – repito – pois nenhuma reforma agrária atingirá propriedades produtivas que preencham a sua finalidade social.

Este pensamento eu o pero deixar expresso, Minas Gerais. Expresso com meridiana clareza. E quero, outrossim, congratular-me com o eminente governador deste Estado, que há pouco declarava apoiar uma alteração do texto constitucional que tornasse exequível uma reforma agrária capaz de atender realmente aos interesses vitais da nação.

Eminente governador Magalhães Pinto, os meus agradecimentos. Cidadãos de Uberaba, proprietários de terras, trabalhadores agrários, posseiros, modestos camponeses que ganhais o pão amargo e escasso com o suor do vosso rosto, aceitai as homenagens e saudações do governo federal. Povo generoso e bravo, jovens estudantes, vanguarda moça dessa cidade, os meus agradecimentos pela acolhida que me dispensais.

Ouvi emocionado, quando cheguei a esta Exposição, a palavra de um estudante, como porta voz de seus companheiros, pedindo a reforma agrária. As grandes reformas, as reformas de estrutura, de base, as reformas recamadas pelas multidões sempre se fazem e sempre se fizeram muito mais com o apoio delas, dos estudantes e dos trabalhadores, do que por iniciativa e decisão do presidente da república.

É necessário que o povo tenha consciência desta grande verdade histórica. Ele precisa participar de todas as riquezas do País e só participará quando vivificarmos o regime, transformando-o numa democracia, com alma atuante, dinâmica, que converta o Brasil, de paraíso de minorias privilegiadas, num País de trabalho honesto onde a todos se assegurem todas as oportunidades de progresso, todos os direitos humanos. Num País cristão, com fé e confiança em seu destino. Num Brasil, onde impere a compreensão, onde reine a fraternidade, onde os que são muito ricos se resignem a ser talvez menos ricos, mas os pobres, com a ajuda de Deus, se sintam menos miseráveis.


Luiz Humberto Carrião (l.carriao@bol.com.br)

Nenhum comentário:

Postar um comentário