Discurso do presidente João
Melchior Marques Goulart na inauguração da XXIX Exposição e Feira Agropecuária
e a V Exposição Nacional de Gado Zebuíno, na cidade de Uberaba – MG, no dia
três de maio de 1963, às 10 horas.
Realmente, Uberaba pode considerar-se a legítima capital do
Zebu de nosso País. Este município tem demonstrado o quanto deve o Brasil ao
espírito abnegado do estado de Minas Gerais, Estado de tradições épicas desde
os tempos do ouro e das bandeiras.
Permitam-me que evoque neste momento a figura de um grande
brasileiro que tanto prestigiou outrora esta exposição e que foi um dos que
mais lutaram, em nosso País, pelo desenvolvimento da pecuária, especialmente da
pecuária de Minas, orgulho de nossa Pátria. Permitam-me os uberabenses que,
nesta oportunidade, recorde o grande presidente Getúlio Vargas, estadista
singular que nunca vos faltou com o seu apoio, com o seu estímulo – e que
jamais deixou de amparar os pecuaristas de Minas, especialmente no que concerne
à criação do Zebu, e isso numa hora em que poucos acreditavam no seu êxito.
Ouvi, com o maior respeito, as palavras do presidente da
Associação dos Criadores deste município e do Triangulo Mineiro. Acreditai
pecuaristas de Minas Gerais, que o governo federal, interessando-se, como agora
o faz, por esta exposição, outro intento não tem senão o de prestigiar a classe
rural, um dos fundamentos da economia de nossa Pátria. Anima-o tão somente o
propósito de voz trazer uma palavra de estímulo, de fé e de confiança,
homenagear aqueles que se dedicam à pecuária, atividade rural das mais antigas,
das mais úteis e das mais patrióticas do Brasil.
Eu faltaria a um dever de lealdade a Minas – a Minas e a este
País – se aqui respeitosamente, mas com franqueza não manifestasse minha
discordância, neste instante, dos conceitos emitidos pelo jovem e digno
presidente desta associação, quanto ao problema da reforma agrária. Deixarei
bem claro o pensamento do governo federal sobre tema tão discutido. Não
desejamos expropriar terras arbitrariamente, de uns, para entregá-las a outros;
não queremos transportar para um plano de riquezas uma classe, esmagando outra
que, com trabalho e sacrifício, construiu suado patrimônio. O que desejemos é,
exatamente, fortalecer o regime democrático em que vivemos e que havemos de defender
e preservar.
Um regime democrático, porém, não se fortalece com palavras e
discursos. Fortalece-se transformando o estado num instrumento de defesa do
povo, de defesa de suas justas reivindicações. Não é sistema estático, mas
dinâmico. Há de marchar ao encontro dos anseios populares, atendendo às suas
legítimas aspirações e constituindo, então, através desse dinamismo, a
verdadeira paz, conseqüente da justiça social – justiça que todos desejamos e
que nos empenhamos em conquistar, mas que jamais obteremos eternizando o
privilégio de uns poucos à custa da miséria e das dificuldades da maioria.
Sinto-me perfeitamente à vontade para falar deste problema
porque nasci camponês, sou homem identificado com a terra. Identificado de fato
e não através de negócios realizados longe dela. Aos 15 anos já labutava lado a
lado dos trabalhadores rurais e de meu pai, em todos os serviços próprios de
uma fazenda. Sinto-me à vontade para dizer que a reforma agrária se há de
processar em bases humanas e cristãs – mas se há de processar realmente para
tranqüilidade da família brasileira, para que os trabalhadores rurais possam
participar das riquezas da sua Pátria; para que os pobres tenham oportunidade
de sair da pobreza; para que os servos da terra consigam um dia, afinal, ser
donos dela. Hão de comprá-la, de pagá-la com o seu esforço. Ninguém pode negar
ao trabalhador rural esse direito elementar de ter também o seu palmo de chão
para produzir. Não se compreende que, num País da vastidão continental do
Brasil, um pobre que se cansa dia após dia vergado sobre a terra não tenha,
jamais, o direito de lhe chamar sua.
Eis a tese que defendo. Reafirmo que de nada adianta
pretender uma reforma agrária sem modificar o texto constitucional. Iludiríamos
o povo se lhe acenássemos com a possibilidade de fazê-la sem alterar a
Constituição. Citarei apenas uma cifra e gravem-na bem no espírito os homens do
interior. Cifra bem significativa: para expropriar apenas 10% das terras
agricultáveis da nossa Pátria, precisaríamos de mais de dois trilhões de
cruzeiros, importância que o governo, indiscutivelmente, não poderia pagar. Se
o tentasse fazer seria à custa de uma inflação aterradora, a cujo impacto não
resistiria nem mesmo as instituições democrática que defendemos.
Sabem os pecuaristas de Minas Gerais que qualquer reforma
agrária obedecerá a um critério prioritário quanto às desapropriações. Nenhuma
lei pode pretender desapropriar terras que estejam produzindo em termos
econômicos, que estejam prestando benefício ao País. Neste caso, a propriedade
deve ser preservada, os direitos de senhorio resguardados. Mas a terra há de
ter, precipuamente, uma finalidade social. Não pode favorecer, somente, os que
a possuem. Comporta, intrinsecamente, um sentido social, pois dela depende o
bem estar da coletividade. Não há de beneficiar apenas os que por trabalho, por
herança, por sorte ou por privilégio a possuem.
Ficai tranquilos jamais concordaríamos com a expropriação
pura e simples de terras. Jamais concordaríamos com o critério arbitrário de
tomar a terra de quem a trabalhou para, simplesmente, a entregar a quem deseje
trabalhá-la. O que pretendemos é que as terras improdutivas se integrem numa
finalidade social. As grandes áreas localizadas junto aos centros de consumo
precisam estar a serviço da coletividade e não, apenas, a serviço individual.
A reforma a que visamos, a reforma por que há tantos anos
batemos, há de contribuir para que todo o povo brasileiro participe da riqueza
nacional. Se assim não for, de que nos adiantará viver neste vasto território,
território imenso, com áreas das mais férteis do mundo? De nada, meus
patrícios, desde que o povo as não usufrua, desde que o povo delas se veja
excluído, sentindo-se no meio em que trabalha um pária, um marginalizado.
Respeitemos o direito do proprietário, mas que a propriedade adquira um alto
sentido social, isto é, que preste serviço ao País, como instrumento atuante e
democrático.
Falamos em pagamento em longo prazo porque o Brasil não teria
condições de comprar terras pelo seu preço atual, liquidando os débitos à vista
e depositando, previamente, as importâncias respectivas.
Ninguém deseja toma chão cultivado pelos seus donos. Esse
será respeitado. O que não se pode respeitar é o latifúndio improdutivo, as
verdadeiras sesmarias dos que vivem pensando em valorizações sem meditar que
toda valorização, efetivamente, decorre de um processo social de que os
camponeses participam. Que os ricos cedam, a tais valores humildes e anônimos,
um pouco do que na verdade lhes cabe. Não cedam a partidos políticos, não cedam
ao presidente João Goulart. Cedam ao povo brasileiro, à própria Pátria, para
que a aristocracia agrícola se transforme, pacificamente, em democracia do
campo.
Esse é o nosso pensamento. Nosso e não de partidos
extremistas, estranhos à concepção cristã do povo brasileiro. Não defendemos
ideologias contrárias ao sentimento cristão do nosso povo – sentimento que é
nosso, que é vosso, terra sagrada de Tiradentes, que é o de todo o Brasil.
Quem hoje deseja a reforma agrária não são os partidos de
esquerda, somente: é a própria Igreja Católica, através da voz mais autorizada
do mundo – que é o chefe espiritual de todos nós, a voz do santo Padre, o Papa
João XXIII.
Que o seu apelo foi ouvido, foi sentido aqui no Brasil,
testemunharam-no ainda ontem os bispos brasileiros em manifesto à Pátria,
pedindo, também, a reforma agrária que há tanto tempo vimos reivindicando.
Não são, portanto, os partidos políticos apenas: são os
bispos brasileiros; são os homens que chefiam espiritualmente o nosso povo; são
as massas brasileiras que acreditam na sua Igreja. São altos dignitários que,
com responsabilidade, vêm dizer publicamente que a reforma agrária é
indispensável à paz e à justiça social.
(palmas prolongadas)
Obrigado! Obrigado! Agradeço profundamente a manifestação de
apreço que generosamente me dais e que sempre recebi deste bravo povo montanhês
– povo que soube sela com sangue a independência do Brasil. Que o presidente da
Associação Rural desta cidade e do Triângulo, e todos os ruralistas mineiros,
recebam as minhas palavras como tributo e homenagem.
Eu não poderia vir aqui, Minas Gerais, sem traduzir outro
pensamento que não fosse o do governo, expresso na mensagem que já tive a honra
de enviar ao Congresso Nacional.
A reforma agrária já está encaminhada. O projeto que tínhamos
o dever de enviar já se encontra no Congresso para que ele, na sua alta
soberania, e com a sua independência, o examine à luz da realidade
brasileira. Para que o examine e,
sensível como é as reivindicações das classes populares, decida depois,
conscientemente, com a responsabilidade de quem está resolvendo um dos
problemas mais graves do Brasil atual.
Agradeço mais uma vez às Associações Rurais de Minas.
Inaugurando esta Exposição, verifico, de visu,
a pujança extraordinária da pecuária mineira, que o governo deseja preservar e
desenvolver.
Ainda há poucos dias, há três dias, determinei à Carteira
Agrícola do Banco do Brasil que elevasse até 42 milhões de cruzeiros o teto
para financiamento à pecuária e à agricultura. Cumpre-nos auxiliar os homens
que vivem da terra, que a lavram, as semeiam e a fazem produzir.
Estes lavradores, grande ou pequenos fazendeiros, são em
geral homens sensíveis às necessidades dos que com eles colaboram de sol a sol,
ajudando-os a construir a grandeza de suas propriedades. Poderão estar tranquilos – repito – pois nenhuma reforma agrária atingirá propriedades
produtivas que preencham a sua finalidade social.
Este pensamento eu o pero deixar expresso, Minas Gerais.
Expresso com meridiana clareza. E quero, outrossim, congratular-me com o
eminente governador deste Estado, que há pouco declarava apoiar uma alteração
do texto constitucional que tornasse exequível uma reforma agrária capaz de
atender realmente aos interesses vitais da nação.
Eminente governador Magalhães Pinto, os meus agradecimentos.
Cidadãos de Uberaba, proprietários de terras, trabalhadores agrários,
posseiros, modestos camponeses que ganhais o pão amargo e escasso com o suor do
vosso rosto, aceitai as homenagens e saudações do governo federal. Povo
generoso e bravo, jovens estudantes, vanguarda moça dessa cidade, os meus
agradecimentos pela acolhida que me dispensais.
Ouvi emocionado, quando cheguei a esta Exposição, a palavra
de um estudante, como porta voz de seus companheiros, pedindo a reforma
agrária. As grandes reformas, as reformas de estrutura, de base, as reformas
recamadas pelas multidões sempre se fazem e sempre se fizeram muito mais com o
apoio delas, dos estudantes e dos trabalhadores, do que por iniciativa e
decisão do presidente da república.
É necessário que o povo tenha consciência desta grande
verdade histórica. Ele precisa participar de todas as riquezas do País e só
participará quando vivificarmos o regime, transformando-o numa democracia, com
alma atuante, dinâmica, que converta o Brasil, de paraíso de minorias
privilegiadas, num País de trabalho honesto onde a todos se assegurem todas as
oportunidades de progresso, todos os direitos humanos. Num País cristão, com fé
e confiança em seu destino. Num Brasil, onde impere a compreensão, onde reine a
fraternidade, onde os que são muito ricos se resignem a ser talvez menos ricos,
mas os pobres, com a ajuda de Deus, se sintam menos miseráveis.
Luiz Humberto Carrião (l.carriao@bol.com.br)